Os anos 60 e 70 do século XVIII testemunham o início de uma trajetória vitoriosa de um cidadão português, o Irmão Lourenço de Nossa Senhora. Sua vida talvez seja a mais misteriosa de quantas se descrevem na história eclesiástica brasileira. Eclesiástica devido ao contexto de religiosidade, espiritualidade e mística em que ele se envolveu.
“Vindo de outras terras e outras eras”, ele se arranjou bem financeiramente graças aos negócios com diamantes na região do Tijuco, hoje Diamantina, seara rica nessas preciosidades.
Apesar de pesquisas variadas sobre a origem e real identidade do Irmão Lourenço, nunca se soube sequer seu verdadeiro nome, apenas um processo de conversão e ingresso na Ordem Terceira de São Francisco, adotando para sempre o nome de Irmão Lourenço de Nossa Senhora, com a intenção explícita de se consagrar à Mãe de Deus e o voto de erguer-lhe, em algum tempo e lugar, um templo, uma ermida.
Referindo-se às hipóteses da procedência do Fundador do caraça, o Padre Antônio da Cruz, em seu livro “O Centenário do Caraça”, de 1920, diz que “o mais plausível é que era (o eremita) um simples colono que, no comércio de diamantes, adquiriu fortuna regular e depois, tocado pela graça divina e melhor compreendendo a vaidade do mundo, recolheu-se à solidão, para consagrar-se ao serviço de Deus.” ¹ (O Centenário do Caraça, Padre Antonio da Cruz,1920)
Nesse novo estado de vida, Lourenço deixa o arraial do Tijuco pelos idos de 1763 e, após alguns percalços da viagem, chega a uma região montanhosa, até então totalmente inóspita, nas redondezas da pequenina Catas Altas, região que lhe parece propícia para erguer uma ermida à Mãe de Deus, cumprindo sua antiga promessa. Devido à semelhança de um dos montes com um grande rosto humano, aquele local já era conhecido como Caraça ou o próprio Lourenço assim o tenha cognominado.
Construída a pequena ermida e seu pequeno complexo hospedeiro, nasce um ideal ainda maior, o desejo de conseguir missionários, religiosos que se dediquem a pregar missões e a educar crianças e jovens. No dia 10 de agosto de 1779, dia de São Lourenço, mártir, onomástico de Lourenço, celebra-se a primeira missa na nova capela que o fundador dedica à devoção de Nossa Senhora Mãe dos Homens.
O Irmão Lourenço viveu ainda 40 anos durante os quais tentou, em vão, continuadores para sua obra. Conseguiu apenas a presença de uns poucos eremitas que com ele foram conviver e a frequência de muitos romeiros, instituindo-se uma confraria religiosa, nos moldes de outras já existentes na Igreja e que se denominou Irmandade Nossa Senhora Mãe dos Homens.
Só em 1820, seis meses após a morte do Irmão Lourenço, o Caraça recebeu novos habitantes, cumprindo-se o desejo do fundador, expresso em testamento enviado à Coroa Portuguesa na pessoa do Rei D. João VI, residente no Brasil desde 1808.
Tendo chegado de Portugal, os padres Leandro Rebello Peixoto e Castro e Antonio Ferreira Viçoso, da Congregação dos Padres Lazaristas, fundada por São Vicente de Paulo, aceitaram a oferta que lhes fizera S. Majestade do referido testamento do Fundador do Caraça.
A Congregação da Missão torna-se, então, a realizadora do sonho do Irmão Lourenço e proprietária das terras, construções e bens do Caraça.
Após a posse legal junto às autoridades, os dois padres pioneiros iniciaram o processo das Santas Missões na região e, ao final do ano de 1820, já estava organizado o Colégio para funcionamento em janeiro do ano seguinte.
Em pouco tempo, a seriedade e a qualidade do ensino fizeram com que o nome do Caraça se difundisse Brasil afora e para lá afluíssem jovens de todos os recantos do país. “O Caraça é joia nacional. O Irmão Lourenço conquistou. São Vicente com arte lapidou.”
Sucessivamente, por quase 150 anos, os padres da Congregação da Missão formaram, no Caraça, padres para a Igreja e um sem-número de jovens cidadãos para Minas e o Brasil. Para cada jovem que por lá passou, o Caraça é “palavra mágica, galvanizada no tempo, educandário saudoso, fonte de sabedoria, formador de caracteres, história de vidas.”
Desde os pioneiros, Leandro e Viçoso, os padres Miguel e Bartolomeu Sípolis, Júlio Clavelin, Luiz Gonzaga Boavida, Mariano Maller, Francisco Silva, Guilherme Vaessen, Pedro Sarneel, Antonio da Cruz e toda a plêiade de filhos de São Vicente que os sucederam até 1968 foram luminares da educação, formando milhares de jovens em um processo de humanismo sadio, com ênfase em temas enriquecedores da cultura e das letras. A par das obrigações curriculares, o hábito da leitura crítica (leitura durante as refeições), da formação oratória (Academias literárias) completava a caminhada educativa, permeada, ininterruptamente, pela construção e vivência de uma espiritualidade séria e profunda.
Resultado desse processo educativo é a quantidade de alunos que se destacaram, quer na sequência da formação para o sacerdócio, quer em outros cenários da vida nacional, ocupando os mais altos cargos da república, com dois presidentes da república, vários ministros de estado, governadores de províncias/estados, bem como cadeiras no Senado Federal, nas Assembleias Legislativas, no Ministério Público e atuantes nas áreas jurídica e docente em variadas instâncias. Cada padre lazarista que trabalhou no Caraça lá deixou sua marca de cultura, educador, cientista, músico e outras tantas habilidades.
D. Francisco Silva, em sua obra “Caraça Apontamentos históricas e notas biográficas”, assim se refere a um dos grandes mestres do Caraça, o padre Miguel Sípolis, francês, vindo para o Brasil no início da década de 1850: “O educador é o lapidador que faceta as pedras preciosas, mas ainda brutas. Seu trabalho é lento, cuidadoso, minucioso mesmo, sempre calmo, mas sempre polindo, desbastando, até obter as facetas que despendem feixes de luz. E isso não vai sem muita paciência, dedicação, energia não vulgar, próprias de poucos verdadeiros educadores.” ¹
O padre Antonio da Cruz, notabilizado pelos 38 anos de trabalho contínuo no Caraça, assim se expressa em sua despedida do Caraça, em 1948: “...atrás desta carantonha severa e carrancuda como as serras do Caraça, está um coração de sacerdote, de professor amigo, que sempre quis acertar na formação da juventude. Se houve erros, e certamente os houve, foram filhos do grande amor a esta casa e do interesse pelos que aqui estudaram.”
História afora, muitos outros filhos de São Vicente se destacaram por sua simplicidade, espiritualidade, humanismo e competência no fazer pedagógico.
Minas Gerais e o Brasil enriqueceram-se culturalmente com a educação/formação proporcionada aos jovens que passaram pelo Caraça.
Refulgiram nomes famosos e honrados que se espraiaram pelo solo nacional. Segundo o presidente Juscelino Kubitscheck: “A influência decisiva dos padres lazaristas sobre a formação moral e intelectual de Minas é profunda e indiscutível. Foram eles os primeiros a atirar sobre o solo quase virgem da inteligência mineira as melhores sementes. Caraça, Mariana e Diamantina são marcos definidores de uma civilização.” (J.K., apud Barros, 2002, p.237)
Evidentemente, a história do Caraça conhece ex-alunos “célebres” e “não célebres”. Sob essa ótica, personifico, aqui, minha trajetória como ex-aluno do Caraça, onde, em 6 (seis) anos, fiz o curso chamado de Humanidades, correspondente aos cursos ginasial e secundário de então.
Minha história no Caraça foi fundamento de uma vida plena de sentido, com desafios, dificuldades, carências, angústias, mas também de gratidão profunda, alegrias e, sobretudo, de vivência e transmissão de valores que, por dom de Deus, eu consegui assimilar e consigo praticar.
Hoje, tenho a felicidade e o orgulho de ser contemporâneo das comemorações dos 250 anos de história, educação e espiritualidade do Caraça e participar, como presidente da AEALAC – Associação dos Ex-alunos dos Lazaristas e Amigos do Caraça – da Comissão de organização e coordenação das celebrações.
Segundo o Padre Sarneel, “Como nasce a saudade, assim nasceu a AEALAC.”
O carinho, a gratidão e a devoção ao Caraça, a generosidade e o espírito cristão transformaram-se em ousadia e desafios. Ex-alunos e amigos dos padres Lazaristas se propuseram unir forças para buscar recursos não só para aquele momento crítico de dificuldades advindas do período pós Segunda Guerra Mundial, em 1945, mas para a continuidade de ajuda financeira e material ao Caraça, bem como custeio de futuros alunos.
Celebrando, agora, 250 anos das primeiras construções do Irmão Lourenço no Caraça, orgulho-me com cada ex-aluno lazarista de ser caracense, de fazer o nome do Caraça louvado e reverenciado em todos os locais por onde passamos.
“Salve, salve, Irmão Lourenço
Tu és o anjo do Caraça
Por ti arde eterno incenso
De lembrança e devoção.” (Hino do Caraça)
Parabéns, Congregação da Missão!