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A nova ordem de Herodes contra a vida dos santos inocentes 19 de Junho de 2024 Pe. Louis Francescon Costa Ferreira, CM
A a     

Derramarei sobre a casa de Davi e sobre todo habitante de Jerusalém um espírito de graça e de súplica, e eles olharão para mim. Quanto àquele que eles transpassaram, eles o lamentarão como se fosse a lamentação de um filho único; eles o chorarão como se chora sobre o primogênito.[Zc 12,10]

No mês de setembro de 2023, o Superior Tribunal Federal debateu sobre a descriminalização do aborto, a interrupção voluntária da gestação. Uma das possibilidades é permitir que se realize o procedimento até a 12ª semana de gravidez. Agora, o assunto volta à tona, por meio do PL 1904/2024. Em que ela consiste? “Equipara o aborto realizado após 22 semanas de gestação ao crime de homicídio simples, inclusive nos casos de gravidez resultante de estupro” [2]. Ora, a ciência nos ensina que no exato momento em que o espermatozoide fecunda o óvulo, há uma vida nova em formação. Como cristãos, de que modo nós reagimos a tal decisão? Certamente, encontramos diversas opiniões entre os fiéis católicos, sobretudo diante do contexto eclesial, cultural, socioeconômico e político atuais.

Vivemos num tempo de grandes desafios, onde aqueles que se dizem seguidores de Jesus deveriam sentir-se interpelados pelo amor do Crucificado (cf. 2Cor 5,14), que veio até nós, trazendo-nos a vida em abundância (cf. Jo 10,10).

Cremos que seja o momento ideal de unirmos nossas vozes e nossas forças para darmos testemunhos da fé que professamos, uma vez que somos chamados para em qualquer situação dar razões de nossa esperança (cf. 1Pd 3,15).

Como Igreja, temos uma grande responsabilidade em defesa da vida. Em tempos de Papa Francisco, que nos chama a uma conversão integral, se faz necessário um autêntico caminho de mudança de vida e de estruturas. Não queremos aqui fazer um discurso político, ‘comunista’ (nome dado a qualquer interpelação em defesa da vida dos mais necessitados). A mensagem de Jesus, portanto, o seu ministério, passou também pelas estruturas de seu tempo: a forma de governo do Império Romano, a geografia da Palestina, a tradição e a cultura judaicas, a resistências aos povos denominados ‘pagãos’ ou ‘gentios’, e outros elementos mais.

Portanto, vivemos no hoje de nossa história cercados por muitas estruturas: governamental, religiosa, cultural, política, econômica etc., e somos convocados a anunciar o Evangelho também aí. Assim, a interrupção voluntária da gravidez é um tema muito sério para os cristãos.

Para ajudar-nos em nossa reflexão, faremos memória à Liturgia da Palavra dos Santos Inocentes (28 de dezembro) e da homilia do Papa Francisco, no dia 24 de dezembro de 2016, na qual o pontífice faz uma clara referência a este tema em questão.

É urgente tomarmos consciência de que o aborto fere a dignidade humana e trará graves consequências para a sociedade brasileira. Como homens de fé, gostaríamos de reforçar a clareza e a lucidez necessárias para que, como cristãos, busquemos o caminho da vida, pois este é o ideal de Jesus, em comunhão com o Pai, na força do Espírito Divino. Não deixemos morrer a profecia que há na espiritualidade cristã!

1. “Nossa alma como um pássaro escapou do laço que armara o caçador.” (Sl 124|123|,7)

O Deus da Sagrada Escritura é o Deus da revelação, isto é, ele se mostra e dialoga com os seus interlocutores. Na plenitude dos tempos, conforme a Cartas aos Hebreus, Deus nos falou através de seu Filho, o qual constitui Senhor para a glória do seu nome. Este mistério, a verdade revelada e transmitida, tem sua gênese na encarnação. Deus se fez homem (cf. Jo 1,14), tomou a nossa condição mortal (cf. Fl 2,6-11), para revelar ao ser humano o seu plano de amor, a mensagem da alegria, da qual os pobres (personificados nos pastores de Belém) são os primeiros destinatários (cf. Lc 2,8-12).

Sim, Jesus será para nós o ‘Bom Pastor’: aquele que dará sua vida e gastará o seu tempo para resgatar as ovelhas perdidas de seu redil, a Igreja (cf. Jo 10,1-42). O fato de os pastores de ovelhas serem os primeiros destinatários da grande alegria do nascimento do Senhor, enche-nos de esperança para confiarmos na providência de Deus: o Senhor que vem a nós, que nasce entre nós, tornar-se-á o ‘Pastor por excelência’, levando suas ovelhas para pastos verdejantes e águas correntes, sem que lhes falte o essencial para viver (Sl 23|22|,1-6).

Jesus, como Bom Pastor, tem um cuidado integral para com aqueles que denomina ‘os seus’. E desde criança, ainda um bebê indefeso, ele enfrenta o ódio dos poderosos, cujo projeto de governo fere, descarta e mata. O Rei Herodes, ao saber que havia nascido um Menino, “rei dos judeus”, por meio da pergunta dos Magos, consulta “os chefes dos sacerdotes e doutores do povo”, os quais lhe confirmam que o Messias deveria nascer em Belém da Judeia, para que se cumprisse a escritura do Profeta Isaías:

Eles responderam: ‘Em Belém da Judéia, pois é isto que foi escrito pelo profeta: E tu, Belém, terra de Judá, de modo algum és o menor entre os clãs de Judá, pois de ti sairá um chefe que apascentará Israel, o meu povo’" (Mt 2,2.4-6).

Depois destas informações, os Magos partem ao encontro do Menino, guiados pela estrela que ilumina seu caminho, mas recebem o convite de Herodes para retornar ao palácio, a fim de que ele possa adorar o Menino, depois de saber precisamente onde Ele se encontra.

Os Magos, ao verem o Menino e sua mãe (cf. Mt 2,9.11), Lhe oferecem os presentes: ouro, incenso e mirra. O metal simboliza que este Menino terá um reino, o qual caminhará na contramão dos ideais de Herodes. O Reino de Deus anunciado por Jesus diz respeito à justiça do Pai que está nos Céus: Cristo perdoa, salva e integra, sobretudo os descartados pelo Império Romano e pelas lideranças religiosas do Templo, que os definem como pecadores que foram castigados por Deus, com a cegueira, paralisia, mudez, surdez etc.

O incenso simboliza que sua missão está plena da graça divina, a saber, o Espírito consolador, o qual está sobre o Messias Jesus, para anunciar a Boa-Nova aos pobres e perdoar o seu povo de seus pecados (cf. Lc 4,18; Mt 1,21).

A mirra é uma prefiguração da unção que lhe será feita, após o desfecho violento da sua missão (cf. Mc 16,1; Lc 24,1).

Quando terminaram a visita, os Magos foram avisados para tomarem outro caminho (cf. Mt 2,12), isto é, se eles encontraram o Autor da Vida, por que se dirigir àquele que gera a morte?

Após esta notícia, Herodes se enfureceu e “mandou matar todos os meninos de Belém e de todo o território vizinho, de dois anos para baixo, exatamente conforme o tempo indicado pelos magos” (Mt 2,16).

Deste evento fatídico surge a memória dos Santos Inocentes [3]. A Igreja celebra a vida plena daqueles que tiveram o seu sangue derramado por causa da ganância política do imperador tirano, que teve medo de perder seu trono, seu status e seu conforto, porque desconcertou-se com a pergunta dos Magos: “Onde está o Rei dos judeus que acaba de nascer?”

Ora, quem mais seria o rei dos judeus senão o próprio Herodes, o filho de Herodes I, que recebeu o trono como herança de seu pai e que o transmitirá para Arquelau (cf. Mt 2,22)?

Quem mais seria o rei dos judeus senão aquele que pesava sua mão contra os pobres, obrigando-lhes a pagar altos impostos, por meio do pouco sustento para sua sobrevivência?

O Reino de Jesus é o oposto de tudo isso! Sua nova família se concretiza não pela linhagem do sangue, mas é membro da família de Jesus aquele que ouve sua Palavra e a coloca em prática (cf. Lc 8,19-21; Mt 12,50). De graça Ele recebeu do Pai, e, de graça, Ele distribui o amor aos pequeninos, com os quais se identificará no juízo final (cf. Mt 25,40).

Nesta mesma liturgia, rezamos o Salmo 124|123|. Ele se encontra no Livro V do Saltério, onde recordamos a reconstrução do país, após a triste experiência do exílio. O salmista, que personifica todos os exilados, entoa um hino de gratidão a Deus, porque fez sua alma escapar do laço que armara o caçador. Qual? Nabucodonosor e todos os seus submissos (cf. 2Rs 24,10-17; 2Rs 25,8-21)!

Por isso, o salmista está convicto de que “se o Senhor não estivesse ao nosso lado, quando os homens se investiram contra nós, com certeza nos teria devorado no furor de sua ira contra nós”. Até mesmo as águas teriam submergido ao povo cativo, e as correntezas, sempre mais impetuosas, lhes teriam arrastado, minando suas vidas.

Porém, o laço arrebentou-se de repente e assim conseguiram libertar-se do mal (Sl 124|123|,7b). O salmista conclui com a afirmação de que se tornou uma jaculatória católica: “O nosso auxílio está no nome do Senhor, do Senhor que fez o céu e fez a terra.” O Reino de Jesus supera os reinos de Herodes e de Nabucodonosor, porque nele se celebra a comunhão universal (“Os confins do universo contemplaram a salvação do nosso Deus” – Sl 97|98|,3b), a liturgia cósmica, porque tudo foi criado por, com e para Ele, e nós fomos predestinados para sermos, segundo a benevolência de Deus, o louvor da glória do Seu nome (cf. Jo 1,3; Cl 1,16).

Livre das pompas do palácio, Jesus caminha nas periferias da Galileia, onde se encontram os marginalizados, isto é, os que se refugiaram nas margens, porque foram descartados dos benefícios do centro cultural, social, político-econômico e religioso.

No Evangelho segundo Marcos, a missão do Mestre se inicia na Galileia; após a sua ressurreição, os discípulos precisam voltar para lá e refazer o caminho do Messias Jesus, morto e crucificado, aquele que era verdadeiramente ‘Filho de Deus’ (cf. Mc 1,9.14.16; 15,39.41).

Ser cristão é transparecer, com palavras e ações, “os mesmos sentimentos que havia no Cristo Jesus” (Fl 2,5). Pobre, mas cheio da graça e do Espírito divino; manso e humilde para quebrar a espiral da violência (cf. Mt 11,29), lógica abraçada pelo Império e pelas lideranças fanáticas de Israel. Fiel ao Pai em tudo, desde a sua origem até o último grito da cruz.

Como cristãos, por qual lógica optamos? Talvez à que se encontra no banquete de Herodes, ‘festa’ na qual foi derramado o sangue de um inocente (cf. Mc 6,14-29)? Ou talvez nós aderimos à lógica do senhor rico que se fartava de banquetes luxuosos e roupas finas, enquanto Lázaro sofria suas penas, tendo por companhia os cães que lambiam suas feridas (cf Lc 16,19-31)?

Escolhe, pois, a vida” (Dt 30,19c). Eis um convite do próprio Deus que deve ressoar mais forte, hoje, nestes tempos sombrios, enquanto nos deixamos seduzir pelas trevas, e nos esquecemos do horizonte no qual brilha a luz (cf. Jo 1,9).

A liturgia da Palavra da memória dos Santos Inocentes traz ainda, como Primeira Leitura, 1Jo 1,5-2,2: nesta passagem tão breve, o autor nos interpela a caminharmos segundo a verdade, porque Deus é luz e n’Ele não há trevas, isto é, a mentira (v. 5-6).

E a luz, que é o próprio Cristo, nos faz entrar em comunhão uns com os outros, pois o sangue derramado na cruz “nos purifica de todo o pecado”, não apenas os nossos, mas o pecado do mundo inteiro (cf. 1Jo 2,2).

Portanto, o martírio do Cristo é o sinal da Nova e Eterna Aliança, constituindo uma comunidade de irmãos, onde não se permite, em comunidades genuinamente cristãs, o descarte do inocente, negligenciando a vida.

Necessitamos viver como “homens perdoados”. Se Cristo nos livrou da morte, destruindo-a em sua entrega na cruz, por que eu aprovaria a morte do meu irmão, do pequenino indefeso?

O martírio é o mais alto testemunho de seguimento a Jesus; mas, quem provocá-lo eou permiti-lo prestará sérias contas, não para os homens, mas para Deus, Autor e finalidade da Vida.

O Evangelho desta mesma liturgia, recorda uma passagem do profeta Jeremias, a saber, “Ouviu-se um grito em Ramá, choro e grande lamento: é Raquel que chora seus filhos, e não quer ser consolada, porque eles não existem mais” (Jr 31,15; Mt 2,18).

Raquel presenciou também a fúria dos opressores no exílio, ao ver o sangue derramado de seus filhos inocentes. Uma ação de Jesus exemplifica como ele reage à dor de uma mãe. Em Lucas, Jesus tem sua identidade construída sobre a figura do Profeta Elias; logo, para este evangelista, Jesus é o ‘Novo Elias’, o grande profeta que anuncia o direito e a justiça, na unção do Espírito (cf. Lc 7,11-17).

Jesus vai à cidade de Naim e se depara com um cortejo fúnebre, no qual levavam o filho único de uma viúva. Ora, Elias também visitara uma viúva em Sarepta, no tempo em que houve grande fome naquela região (cf. 1Rs 17,7-16). Ele pede de comer, mas a mulher tem apenas o suficiente para preparar um pequeno pão, com farinha e azeite, o qual será dividido com a criança, e depois o que lhes resta é esperar a morte.

Elias intervém nesta situação, pede à mulher para preparar-lhe o alimento e depois ela verá o sinal de Deus, que cumpre suas promessas. Houve tamanha fartura e lhes foram restituídas a vida, em todas as dimensões.

Esta cena é relida pelo catequista Lucas, na qual Jesus supera a ação de Elias. A criança morreu, e a mulher ficou só. O que seria dela se partiu sua única esperança, a saber, o fruto das suas entranhas, e se ela não tem marido? Jesus se aproximou, “encheu-se de compaixão e lhe disse: ‘Não chore’. Toca a urna e diz: ‘Jovem, eu lhe ordeno, levante-se’. O morto sentou-se e começou a falar. E Jesus o entregou à sua mãe” (v. 13-15).

A perícope se conclui com a admiração da multidão que diz: “Um grande profeta apareceu entre nós. Deus visitou o seu povo”. Qual a relação do pão pedido por Elias e Jesus? Ele é a vida em abundância, o qual nos deu um alimento salutar, para que todos os que se sentam à mesa para tomar a refeição com ele, tenham a vida em abundância; portanto, é Jesus o verdadeiro pão descido do céu (cf. Jo 6).

No banquete de Jesus há alimento para todos; no banquete de Herodes vidas inocentes lavam a terra com seu sangue (Mc 6,14-29 || Mc 6,30-34) [4]. Jesus mostra, desde a sua concepção até a sua paixão, por quem ele opta como “enviado do Pai” (Messias).

O anúncio do Reino, instaurado em suas palavras e ações, tem sua gênese nas bases, nas minorias, na abertura de coração dos chamados ‘insignificantes’, circunscritos aos limites geográficos de Israel, mas que tem a pretensão de abarcar o mundo inteiro; a liturgia do Natal e o Tempo da Páscoa esclarecem bem essa afirmação.

Para aderir-se ao Reino de Deus, Jesus convida à conversão; o início do ministério de Jesus é marcado por uma mudança radical, porque Ele vai à raiz da lei mosaica, buscando o espírito que se encontra em cada preceito da norma.

Neste processo de conversão, Jesus exorta aos discípulos a se tornarem como criança, pois delas é o Reino dos Céus. Mas qual a intenção do Mestre? Em Mt 19,13-15, Jesus fala do Reino e das criancinhas. Segundo Vitório, a sociedade da época rejeitava tanto as mulheres quanto as crianças, pelo fato de os pequeninos não conseguirem colocar-se na forma da lei.

Jesus ordena que deixem vir a eles os pequeninos, porque refletem a imagem ideal do discípulo mateano: “[...] ao olhar para uma criancinha os discípulos devem refletir sobre sua relação com o Pai dos Céus e se esforçar para serem simples, confiantes e apegados a Ele, como os pequenos seres que têm diante de si” [5].

Se o discípulo dinamiza sua vida para o encontro definitivo com Deus (cf. Mt 5,48), a criança é o melhor exemplo de quem nutre uma confiança irrestrita aos progenitores e pode servir como modelo na fiel relação com o Pai. Portanto, eliminar esta imagem de nossa caminhada, como discípulos de Jesus, ferirá nossa humanidade e nossa fé, pois ela carrega o sopro vital do poder divino e se tornam exemplos das mais caras virtudes cristãs.

No próximo ponto, nos debruçamos sobre a mensagem do Papa Francisco, no Natal de 2016. Segundo o pontífice a imagem do Menino deitado na manjedoura se constitui de um sinal, que pode despertar algo de bom e de belo em nós, ainda que as ‘manjedouras existenciais’ exijam dos cristãos reflexão e gestos concretos da luta contra a desigualdade, a indiferença e o descarte.

2. “Encontrareis um menino envolto em panos e deitado numa manjedoura”: este é o sinal de sempre.

«Manifestou-se a graça de Deus, portadora de salvação para todos os homens» (Tt 2, 11). Estas palavras do apóstolo Paulo revelam o mistério desta noite santa: manifestou-se a graça de Deus, o seu presente gratuito; no Menino que nos é dado, concretiza-se o amor de Deus por nós.

É uma noite de glória, a glória proclamada pelos anjos em Belém e também por nós em todo o mundo. É uma noite de alegria, porque, desde agora e para sempre, Deus, o Eterno, o Infinito, é Deus connosco: não está longe, não temos de O procurar nas órbitas celestes nem em qualquer ideia mística; está próximo, fez-Se homem e não Se separará jamais desta nossa humanidade que assumiu. É uma noite de luz: a luz, profetizada por Isaías e que havia de iluminar quem caminha em terra tenebrosa (cf. 9,1), manifestou-se e envolveu os pastores de Belém (cf. Lc 2,9).

Os pastores descobrem, pura e simplesmente, que «um menino nasceu para nós» (Is 9,5) e compreendem que toda aquela glória, toda aquela alegria, toda aquela luz se concentram num único ponto, no sinal que o anjo lhes indicou: «Encontrareis um menino envolto em panos e deitado numa manjedoura» (Lc 2, 12). Este é o sinal de sempre para encontrar Jesus; não só então, mas hoje também. Se queremos festejar o verdadeiro Natal, contemplemos este sinal: a simplicidade frágil dum pequenino recém-nascido, a mansidão que demonstra no estar deitado, a ternura afetuosa das fraldas que O envolvem. Ali está Deus.

E com este sinal, o Evangelho desvenda-nos um paradoxo: fala do imperador, do governador, dos grandes de então, mas Deus não Se apresentou lá; não aparece no salão nobre dum palácio real, mas na pobreza dum curral; não nos fastos ilusórios, mas na simplicidade da vida; não no poder, mas numa pequenez que nos deixa surpreendidos. E, para O encontrar, é preciso ir aonde Ele está: é preciso inclinar-se, abaixar-se, fazer-se pequenino.

O Menino que nasce interpela-nos: chama-nos a deixar as ilusões do efémero para ir ao essencial, renunciar às nossas pretensões insaciáveis, abandonar aquela perene insatisfação e a tristeza por algo que sempre nos faltará. Far-nos-á bem deixar estas coisas, para reencontrar na simplicidade de Deus-Menino a paz, a alegria, o sentido luminoso da vida.

Deixemo-nos interpelar pelo Menino na manjedoura, mas deixemo-nos interpelar também pelas crianças que, hoje, não são reclinadas num berço nem acariciadas pelo carinho duma mãe e dum pai, mas jazem nas miseráveis «manjedouras de dignidade»: no abrigo subterrâneo para escapar aos bombardeamentos, na calçada duma grande cidade, no fundo dum barco sobrecarregado de migrantes. Deixemo-nos interpelar pelas crianças que não se deixam nascer, as que choram porque ninguém lhes sacia a fome, aquelas que na mão não têm brinquedos, mas armas.

O mistério do Natal, que é luz e alegria, interpela e mexe connosco, porque é um mistério de esperança e simultaneamente de tristeza. Traz consigo um sabor de tristeza, já que o amor não é acolhido, a vida é descartada. Assim acontece a José e Maria, que encontraram as portas fechadas e puseram Jesus numa manjedoura, «por não haver lugar para eles na hospedaria» (Lc 2,7).

Jesus nasce rejeitado por alguns e na indiferença da maioria. E a mesma indiferença pode reinar também hoje, quando o Natal se torna uma festa onde os protagonistas somos nós, em vez de ser Ele; quando as luzes do comércio põem na sombra a luz de Deus; quando nos afanamos com as prendas e ficamos insensíveis a quem está marginalizado. Esta mundanidade fez refém o Natal; é preciso libertá-lo!

Mas o Natal tem sobretudo um sabor de esperança, porque, não obstante as nossas trevas, resplandece a luz de Deus. A sua luz gentil não mete medo; enamorado por nós, Deus atrai-nos com a sua ternura, nascendo pobre e frágil no nosso meio, como um de nós. Nasce em Belém, que significa «casa do pão»; deste modo parece querer dizer-nos que nasce como pão para nós; vem à nossa vida, para nos dar a sua vida; vem ao nosso mundo, para nos trazer o seu amor. Vem, não para devorar e comandar, mas alimentar e servir. Há, pois, uma linha direta que liga a manjedoura e a cruz, onde Jesus será pão repartido: é a linha direta do amor que se dá e nos salva, que dá luz à nossa vida, paz aos nossos corações.

Compreenderam-no, naquela noite, os pastores, que se contavam entre os marginalizados de então. Mas ninguém é marginalizado aos olhos de Deus, e precisamente eles foram os convidados de Natal. Quem se sentia seguro de si, autossuficiente, ficara em casa com as suas coisas; ao contrário, os pastores «foram apressadamente» (Lc 2, 16). Deixemo-nos, também nós, interpelar e convocar nesta noite por Jesus, vamos confiadamente ter com Ele, a partir daquilo em que nos sentimos marginalizados, a partir dos nossos limites, a partir dos nossos pecados.

Deixemo-nos tocar pela ternura que salva. Aproximemo-nos de Deus que Se faz próximo, detenhamo-nos a olhar o presépio, imaginemos o nascimento de Jesus: a luz e a paz, a pobreza extrema e a rejeição. Entremos no verdadeiro Natal com os pastores, levemos a Jesus aquilo que somos, as nossas marginalizações, as nossas feridas não curadas, os nossos pecados. Assim, em Jesus, saborearemos o verdadeiro espírito do Natal: a beleza de ser amado por Deus.

Com Maria e José, paremos diante da manjedoura, diante de Jesus que nasce como pão para a minha vida. Contemplando o seu amor humilde e infinito, digamos-Lhe pura e simplesmente obrigado: Obrigado, porque fizestes tudo isto por mim. [6]

3. “O nosso auxílio está no nome do Senhor” (Sl 124|123|,8)

Numa certa ocasião, eu encontrei com um conterrâneo, que me disse as seguintes palavras: “Não é necessário a religião para sermos bons. O fato de sermos humanos já me responsabiliza para ser íntegro, honesto e bom”. Não seria esse um caro exemplo daquilo que o teólogo jesuíta Karl Rahner denomina “cristãos anônimos”, isto é, aqueles que não optaram pela lei (a-nomos) de Jesus, mas que dão sinais do que Ele viveu e ensinou?

Chamamos a atenção para este detalhe, porque é significativo o Papa Francisco dizer acima que “o sinal de sempre” é encontrar “o Menino envolto em panos e deitado numa manjedoura”. Quando encontramos uma criança ou um bebê é impossível segurar o movimento dos músculos do nosso rosto, que tendem a formar um sorriso, e da ação dos braços em querer segurá-la. Encantamo-nos pela sublime simplicidade que há nesta criatura frágil, que Deus escolheu como ‘sinal’ para os homens.

Na Sagrada Escritura, sobretudo na catequese joanina, o sinal tem a pretensão de suscitar a fé em quem ainda não crê. Por isso, na primeira parte deste livro, o autor anota sete sinais, cujo último e o maior deles é a cruz, sobre a qual Jesus se encarna (Jo 1,19-12,50) [7]. Aquele que fora sujado pelo sangue do parto, por isso Maria precisa purificar-se (cf. Lc 2,22), é lavado com o batismo de sangue, derramado em favor da humanidade inteira; o humano que havia sido reclinado à manjedoura, encontra-se agora pregado no lenho da cruz; o que estivera envolvido em faixas, é tomado para ser mais uma vez envolto em panos e ungido (com a mirra?), para ser depositado no túmulo.

Neste grande sinal, “na linha direta do amor que nos dá e nos salva” [8], nós temos a maior humanidade. Segundo Grün, “a cruz é a imagem do ser humano redimido” [9]. Se optamos pela fé, então nós temos uma responsabilidade a mais diante daqueles que não fizeram adesão pelo humano Jesus; mas aderindo à lógica do descarte, não compreenderam nem mesmo o que significa ‘ser humano’, viver como tal, nas palavras do meu saudoso conterrâneo: “íntegro, honesto e bom”.

É lamentável deixar que este tipo de reflexão tome o tempo de nossos líderes políticos, enquanto ainda não se trata do assunto de políticas públicas que possam erradicar a pobreza, onde a alimentação, o acesso à saúde, à educação, à moradia e transporte façam parte da vida de todos os brasileiros.

Creio que este seja o momento de antecipar a contemplação da imagem do Deus-Menino. Venerar este “sinal de sempre”, do qual parte a história da salvação, quando “manifestou-se a graça de Deus, portadora de salvação para todos os homens” (Tt 2,11).

O Deus de Jesus faz uma clara opção por todos. Se como cristão somos interpelados a viver “à altura do Evangelho” (Fl 1,27a), isto é, a Boa-Notícia que dá vida e forma ao Reino de Deus, no qual todos têm vida em abundância, então o aborto não pode ser uma opção dos cristãos.

O debate presente exige de nós sabedoria, inteligência e maturidade, à luz da fé, que nos dá o horizonte para a nossa vida íntegra, verdadeira, honesta e boa, deixando transparecer o sinal de nossa clara opção pelo Evangelho da Vida, na pessoa dos pequenos, marginalizados e pobres.

Rezemos pela nossa conversão pessoal e comunitária. Cremos que na liturgia dos Santos Inocentes e na homilia de Francisco há elementos para a nossa oração, nestes dias em que há uma tentativa para descriminalizar o aborto ou considerá-lo como crime.

A ‘nova ordem’ de Herodes será o sinal desta “sociedade do cansaço” [10]? A ‘nova ordem’ de Herodes desencadeia e revela quão decadente está o ser humano? Jesus, como humano, carregou sobre si as nossas dores, no momento crucial de sua vida (cf. Is 53,4). Os não-nascidos (nonatos) carregam, tal qual o Messias Jesus, um grande pecado da humanidade: a rejeição “por alguns e a indiferença da maioria”. Por isso, são santos e inocentes, porque não cometerem nenhum mal! 

Não permitamos que este trágico acontecimento histórico se repita no hoje de nossa sociedade. Vivemos, por ora, um ano tão significativo, onde somos interpelados a viver a vocação cristã como “peregrinos da esperança”. Neste Ano B, a palavra de Deus nos traz belos textos que confirmam nosso projeto de vida: nós somos os que foram chamados para “estar com Jesus” (Mc 3,14) e o dom que nos é dado, “a multiforme graça de Deus” (1Pd 4,9-10), é para que cada batizado também se torne o sinal, porque, como amados e redimidos de suas faltas por Deus, “sejam bons e misericordiosos uns para com os outros” (Ef 4,32), como age Deus mesmo (cf. Ef 2,4).

A oração de São Francisco de Assis, o primeiro a contemplar o presépio, nos ajuda em nossa missão de ‘arautos da paz’. Eu me arrisco a fazer o acréscimo: Onde houver desejo de aborto, que eu leve a esperança, o cuidado integral e a vida. Maria, a Mãe das vocações, continua a ser este sinal de fidelidade ao plano salvífico de Deus, quando recebeu a nobre missão de tornar-se a Mãe do Salvador da humanidade inteira.

 

À Maria da Conceição Guedes, pelo seu exemplo de fé e maternidade, e a todos os não-nascidos que tiveram suas vidas ceifadas.

 


 

Notas

[1] Texto escrito pelo Padre Louis Francescon Costa Ferreira, CM, missionário vicentino, graduado em Filosofia, pela Instituto Santo Tomás de Aquino (ISTA), e graduado em Teologia, pela Faculdade Jesuíta (FAJE); pós-graduado em Espiritualidade Cristã e Orientação Espiritual pela FAJE.

[2] Disponível em <<OAB cria comissão para elaborar parecer sobre PL 1904/2024>>. Acesso em 16 de junho de 2024.

[3] As leituras estão disponíveis em <<Liturgia Diária – Santos Inocentes, mártires, Quarta-feira (28/12/2022) | Mundo dos Católicos (mundodoscatolicos.com.br)>>. Acesso em 25 de setembro de 2023.

[4] Optamos pelos símbolos || para que o leitor seja capaz de fazer a comparação que se encontra na catequese de Marcos. Logo após o relato da morte de João Batista, o autor introduz o texto da primeira distribuição dos pães. Ora, é clara a mensagem do evangelista em exprimir que o alimento de Jesus é dado para que se faça comunhão e partilha, contrapondo à ‘festa’ do imperador tirano e da sua corte.

[5] VITÓRIO, Jaldemir. Lendo o evangelho segundo Mateus: o caminho do discipulado do Reino. São Paulo: Paulus, 2019.

[6] Disponível em <<24.12.2016 - Missa do Galo - Santa Missa da Noite de Natal - YouTube>>. Acesso em 26 de setembro de 2023.

[7] A estrutura literário-teológica do Evangelho de João foi colhida na obra de KONINGS, Johan. O Evangelho do Discípulo Amado: um olhar inicial. São Paulo, Loyola, p. 25-38.

[8] Trecho colhido na homilia do Papa referida acima.

[9] GRÜN, Anselm. A Cruz: a imagem do ser humano redimido. São Paulo: Paulus, 2022.

[10] HAN, Byung-Chul. Sociedade do cansaço. Petrópolis: Vozes, 2016.

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